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domingo, 30 de novembro de 2014

Porque a ortografia também é gente

Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Autor: Rui Pimentel

No dia do aniversário da sua morte, sugerimos a (re)leitura do texto de onde foi retirada uma das frases mais célebres de Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa - “Minha pátria é a língua portuguesa”: 

«Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
      Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso. 
      Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez, numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais — tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é — não — a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica. 
      Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. 
      Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.» 

Bernardo Soares, fragmento 259, Livro do Desassossego


domingo, 16 de novembro de 2014

Se Saramago escrevesse dicionários...

Imagem retirada do filme José e Pilar (2010), de Miguel Gonçalves Mendes.

No dia do seu aniversário, citamos, mais uma vez, um consulente atento de dicionários:

«Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir [...] é rir sem fazer ruído e executando contracção muscular da boca e dos olhos. [...] 
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. [...] temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre.
E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso. 
O Sorriso (este, com maiúscula) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.
Mas eu falava de gente, de nós, que fazemos a aprendizagem do sorriso e dos sorrisos ao longo da vida própria e das alheias. [...]
A tudo isto é que eu chamo sabedoria. [...]
Dir-me-ão que não cabe tanto no sorriso. Eu digo que cabe. Soube-o a noite passada, quando foi ele a única resposta para a insónia e para os monstros do pesadelo nascido no sono onde o corpo acabou por deslizar, cansado e aflito. Sorrir assim, mesmo sem olhos que nos recebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue.»

José Saramago, «O sorriso», Deste Mundo e do Outro, 5.ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1997


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Manoel de Barros (1916-2014)


Homenageamos o poeta brasileiro Manoel de Barros (Prémio Jabuti 1989), hoje falecido:

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos 
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de 
um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros, O livro das ignorãças, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p.17. 

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Agenda: Dia(s) do Desassossego



O que partilham José Saramago e Fernando Pessoa, além dos óculos, da nacionalidade, da escrita, da língua portuguesa ou do mês de Novembro (que viu nascer Saramago e morrer Pessoa)? Partilham o desassossego, nome da obra incontornável Livro do Desassossego de Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa, e sentimento que habitava Saramago, pois o escritor vivia desassossegado e escrevia para desassossegar. De 15 a 17 deste mês, Saramago e Pessoa partilham também o Dia do Desassossego.

O Dia do Desassossego é uma iniciativa que a Fundação José Saramago tem levado a cabo nas ruas de Lisboa desde 2012, promovendo a leitura de textos de Saramago e de outros autores portugueses. Este ano, o programa conta com a parceria da Casa Fernando Pessoa e apela aos leitores para que se deixem desassossegar pela leitura, seja pela participação em leituras públicas, na troca de livros ou em concertos. Mais informação aqui.





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