Há já quinze anos que a UNESCO celebra o Dia Internacional da Língua Materna no dia 21 de Fevereiro, no intuito de promover a diversidade linguística e cultural.
Para comemorar essa data, deixamos à reflexão a crónica “A língua que nos constrói”, do escritor José Eduardo Agualusa:
«Não há como a brutal aspereza do alemão quando o que se pretende é intimidar alguém. Experimente, por exemplo, gritar "Macht es Ihnen etwas aus, wenn ich rauche", enquanto arranha o ar com os punhos, e vai ver que o efeito é aterrador. A frase em causa, no entanto, significa simplesmente «Importa-se que eu fume?». Desconfio que pouca gente teria levado Adolfo Hitler a sério, com aquele bigode ridículo, a franjinha tenaz, a miserável figura de carteirista sem sorte, se ele se exprimisse no repousado português do Alentejo, na cantoria afável dos napolitanos ou na alegre geringonça dos ciganos espanhóis. Porém, sempre que vejo imagens do homenzinho, aos gritos, no esforço de cuspir arame farpado, compreendo o vasto terror que inspirou.
Em francês, pelo contrário, é possível dizer quase tudo, inclusive obscenidades, como se fosse uma declaração de amor. Não por acaso preferimos nomear na língua de Baudelaire determinados utensílios, como retrete (de “retraite”, retirada), ou cotonete (do francês “cottoner”, forrar com algodão), certamente porque, de alguma forma, isso parece conferir-lhes uma dignidade que a sua função desmente. “Escargots”, outro exemplo, não são caracóis. Os caracóis comem-se nas tascas rudes dos bairros operários, com palmadas nas costas, gargalhadas, vinho derramado sobre a mesa (de plástico). Já o “escargot” supõe toalhas de linho, copos de cristal, velas altas em candelabros de prata, sussurros, o tédio da boa educação.
E o espanhol? Quando era criança, acreditava que fosse uma língua inventada pelos palhaços. Talvez porque os palhaços da minha infância fossem invariavelmente de origem espanhola, talvez porque o espanhol me parecesse uma forma desastrada de falar português. Hoje, continuo a acreditar que o espírito festivo dos espanhóis — uma cortina de melancolia separa Portugal da península — se deve ao uso da língua.
Ao sol dos trópicos, em África e no Brasil, a língua portuguesa floresceu. Vale a pena lembrar, a propósito, alguns versos da poetisa moçambicana Manuela de Sousa Lobo: «Alguém falou-me dos esquilos e das zebras / que também que já andam falar português / talvez que estória de mentiroso ou poeta / mas até que ia ser bom / conhecer nossa língua florestando-se às riscas nos morfemas / pastando devagarinho com a cauda felpuda se abanando / Chei! Nem nunca vi / advérbios no capim nos meus 27 anos.” Nos países onde se fala português ficou sempre, no entanto, uma sombra da melancolia lusitana, o que explica a morna, o chorinho, o culto particularíssimo da saudade.
Nós criamos as línguas e depois elas recriam-nos a nós. Escritores como o brasileiro Guimarães Rosa ou o moçambicano Mia Couto tornaram-se conhecidos como inventores de palavras. Raramente, porém, as palavras criadas por um escritor ganham vida real, ou seja, alcançam a linguagem do povo. As palavras não têm autor.
Conheço no entanto um brasileiro que se orgulha de ter dado nome a um objecto — o que seria realmente vulgar —, mas a um povo. Um povo inteiro. Gustavo, o meu amigo, é operador de câmara. Há alguns anos acompanhou uma pequena equipa numa expedição à floresta da Amazónia. Numa zona remota da floresta descobriram uma tribo indígena até então completamente desconhecida. Os índios receberam-nos com manifestações de júbilo e deslumbramento. Afeiçoaram-se sobretudo ao meu amigo, carioca de Copacabana, surfista, excelente figura. Gustavo odiava a curiosidade dos índios. Afastava aos gritos os bandos de crianças que teimavam em investigar os seus pertences, fascinados com a câmara, as lentes, as luzes: «Tira a mão daí! Tira a mão daí!» Era isto o dia inteiro. Os índios não se incomodavam. «Tira a mão daí!», gritava o Gustavo, e eles riam-se, ensaiavam carícias, voltavam a enfiar as mãos nas mochilas. A equipa foi-se embora, e alguns meses depois um grupo de antropólogos chegou ao local. Gustavo tem a certeza que os índios receberam a delegação, efusivamente, com a única frase que sabiam em português. Os antropólogos acharam, provavelmente, que era uma afirmação identitária. O facto é que a tribo é conhecida hoje entre os indigenistas por este estranho nome — Txiramãdaí.»
José Eduardo Agualusa, “A língua que nos constrói” in A substância do amor e outras crónicas, 3.ª edição, Lisboa: D. Quixote, 2010, pp. 129-132.