Homenageamos o escritor brasileiro Ariano Suassuna, recentemente falecido, com o excerto da sua obra-prima teatral em que uma das personagens não esconde seu espanto perante um Cristo negro:
«JOÃO GRILO
Apesar de ser um sertanejo pobre e amarelo, sinto perfeitamente que estou diante de uma grande figura. Não quero faltar com o respeito a uma pessoa tão importante, mas se não me engano aquele sujeito acaba de chamar o senhor de Manuel.
MANUEL
Foi isso mesmo, João. Esse é um de meus nomes, mas você pode me chamar também de Jesus, de Senhor, de Deus... Ele gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa que assim pode se persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus.
JOÃO GRILO
Jesus?
MANUEL
Sim.
JOÃO GRILO
Mas, espere, o senhor é que é Jesus?
MANUEL
Sou.
JOÃO GRILO
Aquele Jesus a quem chamavam Cristo?
MANUEL
A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por quê?
JOÃO GRILO
Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.
BISPO
Cale-se, atrevido.
MANUEL
Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.
JOÃO GRILO
Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor pode não ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto.
MANUEL
Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?»
Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida, 11.ª ed., Rio de Janeiro: Agir Editora, 16975, pp. 146-149.
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