«[...]
- O Sr. já reparou bem num dicionário?... Num dicionário qualquer?... No de Morais, por exemplo... Ou no do povo... (Tanto faz!...) Já reparou?...
Eu esperei pela sequência do discurso. A aproveitar aquela mandriice tão boa de ter alguém a raciocinar por mim.
- Já reparou?... Pois a mim faz-me lembrar, sabe o quê?... Um jazigo de família. Ou melhor: um jazigo de nação. Uma espécie de mausoléu de papel, onde gerações de gatos-pingados empilharam séculos e séculos de palavras, algumas já definitivamente mortas, cobertas de bichos e de coroas saudosas... Outras vasquejaram nos últimos estremeções... E muitas, apenas em estado cataléptico, à espera de um toque de dedos para regressarem à monotonia da vida diária... A este maldito bolor, onde utilizamos ao todo quantas palavras vivas - diga-me lá quantas? Quinhentas? Mil?... Nem tantas, talvez!
Garanto-lhe que, em certos dias, quando subo o Chiado... ou entro num café da Baixa... e ouço essa gente parda a repisar, de manhã à noite, os mesmos termos... as eternas expressões... os substantivos inevitáveis... os adjectivos fatais... e o verbo ser, o verbo haver, e o verbo ter, e o verbo fazer... sabe o que me apetece?... Saltar para cima de uma mesa ou de um marco postal e gritar furioso aos homens: não deixem morrer as palavras, assassinos! Não deixem morrer as palavras!
[...]»
José Gomes Ferreira, Gaveta de Nuvens, Lisboa: Diabril, 1975, p. 235.
O trecho acima, do escritor português José Gomes Ferreira (1900-1985), brinda-nos com o abespinhamento de um aguardentado explicador de português a propósito de “gente parda a repisar, de manhã à noite, os mesmos termos, as eternas expressões”, a par do “jazigo de nação” contido nos dicionários. Se fosse hoje, será que o dito explicador de português teria reparado bem no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e no que ele faz diariamente para não deixar morrer as palavras? Teria ele reparado bem na palavra do dia do Dicionário da Priberam, iniciativa que hoje comemora mais um aniversário? Há dezasseis anos que uma geração de “gatos-pingados” linguistas revira “mausoléus de papel” com “séculos e séculos de palavras [...] à espera de um toque de dedos para regressarem à monotonia da vida diária” para destacar, nem que seja por um dia, um termo maioritariamente raro, curioso, pouco usado, caído no esquecimento ou mesmo moribundo, como alguns dos que foram partilhados neste último ano:
A partilha da palavra do dia acontece na página online do Priberam e nas suas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, Bluesky e TikTok), sendo também divulgada em programas radiofónicos da Rádio Morabeza e da Rádio Voz de Alenquer.
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